Arquivo do mês: janeiro 2014

O cachorrinho faminto

O cachorrinho, já mal nutrido e magrinho, devorava um pedaço de pão velho como se fosse sua última ceia. Coisa de sorte, pois sendo menor e mais fraco que os outros cães por perto, só conseguiu se dar bem porque o cachorrão que detinha os direitos de comer tudo primeiro havia se distraído com o cheiro do traseiro do cão ao lado. Aqueles segundos sagrados de lambeção de bunda foram uma benção pra ele, assim, pelo menos mais uns dois dias de miséria já estavam garantidos.

Pronto, o dia estava feito, hora de sair correndo a festejar de satisfação e contentamento. Junto com seus amiguinhos, passou o resto da tarde entre brincadeiras, caminhadas longas e sonecas. Desorientado e sem perspectiva de dias melhores, e apesar de ser um dos últimos na escala social canina, mantinha-se sempre na sombra dos mais fortes e capazes, os mesmos que os sacaniavam, e não fazia nada consigo mesmo para mudar sua condição. Ele não sabia de outra coisa, a não ser seguir, esperar, sofrer e contentar-se com migalhas; foi assim, toda sua vida, era o que conhecia.

Um belo dia, depois de saborear restos de comida encontrados no lixo de um evento beneficente para cachorrinhos famintos, foi pego de surpresa pela carrocinha. O coitadinho era tão vassalo que nem contestar contestou. O homem da justiça o levou no bico, deixando-o sem saída num canto de parede e daí, foi só amarrar a cordinha no seu pescoço e apontar o destino. Ele estava, agora, marcado pra morrer.

Os dias seguiram-se vagarosamente, enjaulados. O cachorro passou a acordar todas as manhãs com o perfume do leite, pão com manteiga e mais uma boia gostosa que ele não conseguia identificar, mas que mandava ver sem dó. Nem pressa era preciso, não havia mais a necessidade de comer correndo, brigar pelo rango, tudo aparecia do nada e sem lamentos. Mais tarde, uma ração deliciosa o deixava ainda mais preguiçoso. O esforço, então, resumia-se em esperar a noitinha chegar e poder comer novamente. E dessa forma, cresceu, ficou forte e já não queria sair dali, temia perder aquela boca e acabar tendo de se virar sozinho, apesar da jaula. Quando o punham com os outros cachorros, o cãozinho fazia questão de deixar bem claro a todos que o negócio era ficar quieto pra manter as coisas como estavam, portanto, comportava-se de maneira submissa; gostava do que tinha, e não tinha outro jeito.

Mas a situação mudou numa dessas manhãs abençoadas, ao invés de darem término à sua vida, o puseram em um abrigo porque ele era muito bonitinho e porque as ONGs de proteção animal conseguiram seu fado na justiça. A mamata continuou, e enquanto esperava sem saber por um caridoso qualquer que o levaria para um lar, encontrou-se em um ambiente melhor ainda que o anterior. Além de toda a regalia, ele ganhava amor e atenção. Nestas alturas, era possível observar que ele já fazia tudo que o mandavam sem bronca nem dificuldades, mais ou menos como antes, mas desta vez por motivos justos, afinal de contas, era tudo por amor.

Isso ficou assim por dois dias, quando sua grande fortuna apareceu para salvá-lo. Ele foi escolhido no ato, e sem muita demora, alojou-se dentro de uma casinha bonita e cercada por todos os lados. Ali, havia de tudo, carinho, comida gostosa, água limpa, atenção e também disciplina. Seus amos queriam treiná-lo e transformá-lo em um exemplo de cãozinho. Custou um pouco, ele não tinha a mínima noção de como agir, e por isso, foi levado através da força a cumprir certos requisitos, finalmente servindo de distração e passatempo aos amigos e visitas de seus donos.

Ele acabou se acostumando com a rotina e entendendo que não tinha pra onde correr, a não ser, quando escapava pelo portão da frente e se deparava com todo o mistério das alamedas que o acolheram na infância. O espaço aberto e livre o tentava irreverentemente, deixando-o cabreiro e confuso às vezes, principalmente quando encontrava antigos amigos ainda vivendo por si só. Ele era, portanto, tudo que sonhava ser quando vivia como mendigo, um mendigo de barriga cheia. Dessa forma, e com o tempo, adotou uma conduta orgulhosa de quem venceu na vida, passando a exercer suas funções amorosamente e deixando a seus descendentes, uma tradição de obediência e servidão que os garantiria uma presença útil na sociedade e a benevolência dos outros. A única coisa que não mudou com as mutações da vida doméstica foi o fato de que, queira ou não queira, o cachorrinho parecia estar sempre faminto.

Welton V Arantes